Transcendência
Cristã e Imanência Moderna
Achamos
a característica específica do pensamento clássico na solução
dualista do problema metafísico. Existem o mundo e Deus, mas são
separados entre si: Deus não conhece, não cria, não governa o
mundo. Tal dualismo não será negado, mas desenvolvido no pensamento
cristão mediante o conceito de criação, em virtude da qual é
ainda afirmada a realidade e a distinção entre o mundo e Deus, mas
Deus é feito criador e regedor do mundo: o mundo não pode ter
explicação a não ser em um Deus que transcende o mundo.
O
pensamento moderno, ao contrário, finaliza em uma concepção
monista-imanentista do mundo e da vida: não somente Deus e o mundo
são a mesma coisa, mas Deus é resolvido num mundo natural e humano.
Conseqüentemente, não se pode mais falar em transcendência de
valores teor éticos e morais, religiosos e políticos, pois "ser"
e "dever ser" são a mesma coisa, o "dever
ser" coincide com o "ser".
É evidente que a passagem da concepção dualista (clássica) à
concepção teísta (cristã) é um desenvolvimento lógico, que se
manifesta especulativamente no desenvolvimento tomista de
Aristóteles. Pelo contrário, a passagem da concepção tradicional,
teísta, à concepção moderna, imanentista, representa teoricamente
uma ruptura.
O
pensamento moderno, todavia, especialmente o pensamento da
Renascença, tem seu precedente lógico no panteísmo neoplatônico,
que - após ter-se afirmado como extrema expressão do pensamento
clássico - permanece através de todo o pensamento cristão em
tentativas mais ou menos ortodoxas de síntese entre cristianismo e
neoplatonismo (Pseudo Dionísio, Scotu Erígena, Mestre Eckart etc.).
E, por outra parte, o pensamento tradicional, helênico-escolástico,
aristotélico-tomista, encontrará nos grandes valores da civilização
moderna (a ciência natural, a técnica, a história, a política)
sua integração lógica.
Não se
julgue demolir a filosofia medieval, a metafísica tomista, opondo à
sua elementar e fantástica ciência da natureza a ciência
moderna com suas grandes aplicações técnicas, pois não é a
ciência natural - capaz apenas de resolver os problemas da vida
material, mas incapaz de resolver os problemas máximos da vida,
espirituais, morais, religiosos - que pode decidir do valor de uma
civilização.
E a
ciência natural da Idade Média não está absolutamente em conexão
com o pensamento filosófico medieval; o próprio Tomás de Aquino
julgava logicamente que a filosofia podia ser uma só, em adequação
à realidade, ao passo que admitia a possibilidade de uma ciência
natural diversa daquela do seu tempo. Além disso, se, de fato, a
escolástica pós-tomista, decadente, alimentou suspeitas e combateu
longamente contra a nascente ciência moderna, a favor da velha
ciência natural aristotélica, a nova escolástica, isto é, o novo
tomismo, não teve dificuldade alguma em aceitar toda a ciência
natural moderna, e, como tal, porquanto esta representa um valor
infra-filosófico, e, como tal, indiferente à filosofia, à
metafísica.
O valor
da ciência moderna não é teorético, especulativo, metafísico,
mas empírico e técnico. Tal era também o pensamento do grande
fundador da ciência moderna, Galileu Galilei, que afirmava ser o
objeto da ciência não as essências metafísicas das coisas, e sim
os fenômenos naturais, experimentalmente provados e matematicamente
conexos. E destes conhecimentos experimentais e matemáticos de
fenômenos naturais derivava ele as primeiras grandes aplicações
técnicas da ciência moderna. Aplicações técnicas que possuem
também um valor espiritual, o do domínio natural do homem sobre a
natureza: contanto que o homem reconheça, naturalmente, acima de si
e de tudo, Deus.
O que
dissemos da ciência, podemos dizê-lo analogamente da história. A
historiografia medieval é, sem dúvida, insuficiente, ingênua,
descuidada, pois, era escasso na mentalidade medieval o senso da
concretidade e da individualidade, sem o qual não é possível a
história verdadeira e própria. Mas a concepção medieval da
história, que é a cristã e já teve a sua expressão clássica na
Cidade de Deus de Agostinho é perfeitamente conciliável com a
indagação histórica moderna, devendo esta última fornecer à
primeira a sua rica contribuição de fatos, o seu profundo senso
histórico, o seu interesse pela concretidade.
Costuma-se
inculpar a civilização medieval por ter aniquilado o estado
nacional concreto, orgânico, para construir uma unidade política
grandiosa, mas abstrata, uma utopia universalista, como o Sacro
Império Romano. No entanto, isto não foi senão uma expressão
exterior daquela estrutura profunda que se chama a cristandade:
equivalente civil da igreja católica, capaz de abraçar os mais
diversos organismos políticos. Nem se deve esquecer que precisamente
na comuna medieval se encontra a primeira origem do estado moderno,
interiormente organizado e politicamente soberano. E é na Idade
Média que se formam as grandes nações modernas. Noutras palavras,
é na Idade Média que se formou o Estado distinto da Igreja, mas não
leigo, imanentista, ateu, bem como o laicado distinto do clero e
organizado civilmente em graus de corporações, mas cristão,
católico, romano.
Poder-se-ia
fazer notar que tal efetiva distinção e relativa autonomia do
Estado (e do laicado) com respeito à Igreja (e ao clero) foram
alcançadas através de uma longa luta contra o predomínio e a
invasão destes últimos. Mas cumpre ter presente que, na alta Idade
Média, no período bárbaro, nos séculos de ferro, a igreja romana
e o clero católico desempenharam funções também leigas e
profanas, como, por exemplo, a instrução cultural, a assistência
hospitalar, e até a agricultura, a indústria, o comércio, as
comunicações etc., pelo fato de que ninguém estava em condições
de fazê-lo.
E é
devido a isso que a civilização não pereceu, e foi conservada para
a idade moderna. Aliás, a Igreja católica estava apta e disposta -
a prescindir-se das intenções dos homens e de suas fraquezas fatais
- a livrar-se desses cuidados estranhos gravosos e perigosos para o
seu ministério transcendente e sobrenatural, quando os homens e os
tempos estivessem maduros. Basta lembrar, a este respeito, a atitude
da Igreja, praticamente liberal, compreensiva e ativa com respeito ao
Estado, desde os comunas medievais até as grandes monarquias
européias do século XVII e ainda além.
Os
Precedentes do Pensamento Moderno
Dada a
ruptura lógica entre o pensamento tradicional, teísta, e o
pensamento moderno, imanentista, não se podem achar causas racionais
dessa mudança, mas apenas práticas e morais. Em seguida virá a
justificação teórica da nova atitude espiritual, que será
constituída por todo o pensamento moderno em seu desenvolvimento
lógico.
O
grandioso edifício ideal da Idade Média, em que a religião e
civilização, teologia e filosofia, Igreja e Estado, clero e
laicado, estavam harmonizados na transcendente unidade cristã, foi,
de fato, destruído pelo humanismo imanentista, que constitui o
espírito característico do pensamento moderno. Este pensamento
começa com a prevalência dada aos interesses e aos ideais materiais
e terrenos, com o conseqüente esquecimento dos interesses e ideais
espirituais e religiosos; e torna-se completo com a justificação
dos primeiros e a exclusão dos segundos. É precisamente o que
acontece com os homens inteiramente entregues aos cuidados mundanos:
primeiro se esquecem das coisas transcendentes, e, em seguida,
querendo ser coerentes, negam-nas.
Entretanto,
se não há causas lógicas do pensamento moderno, há, porém,
precedentes especulativos, que, valorizados pela nova atitude
espiritual, se tornarão fontes especulativas do próprio pensamento
moderno. Tais precedentes especulativos podem ser resumidos desta
forma: o panteísmo neoplatônico, o aristotelismo averroísta e o
nominalismo ocamista, os quais se foram afirmando contemporaneamente
a uma gradual decadência do genuíno pensamento escolástico
(racional, teísta, cristão), especialmente tomista, com que se acha
em oposição. E tal decadência cultural é acompanhada, por sua
vez, pela decadência da Igreja e do Papado - o exílio avinhonês e
o cisma do ocidente.
O
panteísmo neoplatônico teve a sua primeira grande manifestação,
no âmbito do cristianismo, com Scotu Erígena. Tentará afirmar-se
de novo na própria época de Tomás de Aquino com Mestre Eckart, o
iniciador da mística alemã. E receberá uma nova original
elaboração do Humanismo com Nicolau de Cusa, que não pouco deve
aos precedentes; e, sobretudo, com Giordano Bruno, o maior pensador
da Renascença, o qual depende, por sua vez, de Nicolau de Cusa. O
averroísmo latino afirmara na Idade Média a sua famosa doutrina das
duas verdades: o que não é verdadeiro em filosofia pode ser
verdadeiro em religião e vice-versa.
Em uma
idade cristã, como a Idade Média, a afirmação religiosa podia ter
a prevalência sobre a negação filosófica; obscurecendo-se a fé,
como na Renascença, devia prevalecer uma concepção anti-cristã,
aristotélica ou não. O ocamismo marca a conclusão lógica da
decadente escolástica pós-tomista, apesar de seus partidários se
comprazerem em denominá-la via modernorum. E, ao mesmo
tempo, apresenta um elemento fundamental da filosofia moderna com o
seu empirismo e nominalismo. Nicolau de Cusa, Telésio, Bruno,
Campanella serão também herdeiros do nominalismo empirista de
Ochkam, que se combina, nos sistemas deles, com uma metafísica
aventurosa de cunho particularmente neoplatônico.
Como é
sabido, segundo Ochkam, o conhecimento humano é reduzido ao
conhecimento sensível do singular e, portanto, ao nominalismo.
Conseqüência lógica e consciente é a destruição da metafísica,
que transcende o mundo empírico, sensível, bem como da ciência,
que é entretecida de conceitos, impossíveis de nominalismo, de
sorte que se esvai da teodicéia, porquanto não se pode provar
racionalmente a existência de Deus, nem conhecer a sua natureza; e a
psicologia racional, pelo mesmo motivo. E, conseqüentemente,
torna-se impossível a ética racional, porque - sendo desconhecida a
essência de Deus e destruída a do homem - a moral fica reduzida a
um conjunto de preceitos arbitrários de Deus, que o homem tem que
observar por fé. Ochkam procurará salvar-se do ceticismo -
conclusão do seu sistema, com todas as conseqüências práticas -
mediante a fé.
Entretanto
é uma posição insustentável, porquanto a fé - não podendo mais
ser um racional obséquio - torna-se uma adesão cega. Em época de
religiosidade ainda viva, esse fideísmo ocamista pôde praticamente
ficar de pé. Mas ruirá quando a fé vier a faltar deixando o
terreno livre ao empirismo, ao naturalismo, ao nominalismo, ao
ceticismo, imanentes ao ocamismo, e que constituirão tão grande
parte do pensamento da Renascença, da Reforma e também do
pensamento posterior.
Os
Períodos do Pensamento Moderno
Este
grande movimento especulativo, que é o pensamento moderno,
naturalmente não se manifesta na sua significação imanentista
senão na plenitude do seu desenvolvimento. Portanto, manifesta-se
através de uma série de períodos, que se podem historicamente (e
dialeticamente) indicar assim:
1.
Antes de tudo a Renascença, em que a concepção imanentista,
humanista ou naturalista, é potentemente afirmada e vivida.
Trata-se, porém, de uma afirmação ainda não plenamente consciente
e sistemática, em que o novo é misturado com o velho. Este, muitas
vezes, prevalece ao menos na exterioridade da forma lógica e
literária. A Renascença é preparada pelo Humanismo, e tem como seu
equivalente religioso a reforma protestante.
2. A
este primeiro período do pensamento moderno, que, substancialmente,
abrange os séculos XV e XVI, se seguem o racionalismo e o empirismo,
que abrangem os séculos XVII e XVIII. Após a revolução
renascentista e protestante, sente-se a necessidade de uma séria
indagação crítica, não para demolir aquelas intuições
revolucionárias, mas, ao contrário, para dar-lhes uma
sistematização lógica. É o que fará especialmente o racionalismo
em relação ao conhecimento racional.
3.
E outro tanto fará e empirismo em relação ao conhecimento
sensível. Empirismo e racionalismo são tendências especulativas,
gnosiológicas, opostas entre si, como a gnosiologia sexista está
certamente em oposição à gnosiologia intelectualista. Entretanto,
concordam em um comum fenomenismo, pois, em ambos, o sujeito é
isolado do ser e fechado no mundo das suas representações. Não se
conhecem as coisas e sim o nosso conhecimento das coisas.
4.
Empirismo e racionalismo, após uma lenta, gradual e silenciosa
maturação, encontrarão uma saída prática, social, política,
moral, religiosa no iluminismo e, portanto, na revolução francesa
(Segunda metade do século XVIII); esta representa a concreta
realização do pensamento moderno na civilização moderna. Esse
movimento começa na Inglaterra, triunfa na França e se espalha, em
seguida, na Alemanha e na Itália.
Referências Bibliográficas:
DURANT, Will. História da Filosofia - A Vida e as Idéias dos
Grandes Filósofos, São Paulo, Editora Nacional, 1.ª edição,
1926.
FRANCA S. J. Padre Leonel, Noções de História
da Filosofia.
PADOVANI, Umberto e CASTAGNOLA, Luís. História
da Filosofia, Edições Melhoramentos, São Paulo, 10.ª edição,
1974.
VERGEZ, André e HUISMAN, Denis. História da
Filosofia Ilustrada pelos Textos, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 4.ª
edição, 1980.
JAEGER, Werner. Paidéia - A Formação do
Homem Grego, Martins Fontes, São Paulo, 3ª edição, 1995.
Texto
Produzido Por Rosana Madjarof - 1998 - Respeite os Direitos Autorais
- Buscando o conhecimento como ideal de vida.
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